A preocupação com as políticas de drogas no Brasil levou o governo federal a lançar, em maio de 2010, o Plano Integrado de Enfrentamento ao Crack e Outras Drogas, cujo principal objetivo é desenvolver ações de prevenção, tratamento e reinserção social do usuário de crack e de combate ao tráfico. De acordo com o Decreto nº 7.179 de 20 de maio de 2010, as ações do Plano deveriam ser executadas de forma integrada, por meio da aliança entre a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios.
Logo quando lançado, o Plano recebeu críticas em relação à insuficiência do orçamento destinado: somente R$ 410 milhões seriam repassados para os 27 estados. Considerando um país com mais de 5 mil municípios, os recursos autorizados não cumpririam as ambições do Plano.
Contudo, em dezembro de 2011, o governo federal lançou o programa “Crack, É Possível Vencer”, que consiste numa ampliação e inovação do Plano Integrado. Agora com um investimento de R$ 4 bilhões até 2014, o programa conta com a atuação direta dos ministérios da Justiça, da Saúde e do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. As ações do programa “Crack, É Possível Vencer” estão estruturadas em três eixos: cuidado, autoridade e prevenção.
O eixo “cuidado” refere-se ao aumento da oferta de tratamento e atenção à saúde dos usuários de crack, com as seguintes ações: ampliação dos serviços de saúde para os dependentes e suas famílias no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS); implantação dos “Consultórios na Rua”, aumento do número de vagas e ampliação do horário de atendimento em Unidades de Acolhimento (adulto e infanto-juvenil) e nos Centros de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas (CAPS-AD); ampliação da quantidade e qualificação de leitos em enfermarias especializadas e o apoio financeiro às comunidades terapêuticas.
O eixo “autoridade” além de ter como diretriz o enfrentamento ao tráfico de drogas e ao crime organizado, também prevê a atuação nas cracolândias, por meio do policiamento ostensivo, recuperação da infraestrutura pública e restabelecimento da convivência comunitária. Tais ações de “revitalização dos espaços urbanos”, que contam com o auxílio de videomonitoramento, evidenciam o que Foucualt nos alertava há mais de 30 anos em seu livro Vigiar e Punir: uma política de coerção que visa o domínio do corpo alheio e utiliza dispositivos de poder e vigilância (as câmeras em alusão ao panóptico) com o objetivo de tornar o indivíduo dócil e útil.
Já o eixo “prevenção” busca difundir informações sobre o crack e outras drogas, utilizando os canais de comunicação por internet e serviço telefônico, além da oferta de capacitações aos profissionais.
O programa já recebeu a adesão de doze estados. Dentre eles, o estado de Minas Gerais receberá, até agora, o maior investimento: R$ 476 milhões. Desse modo, foi assinado o pacto para a execução do Plano Mineiro de Enfrentamento ao Uso Indevido de Álcool, Crack e outras Drogas, no qual fica estabelecido que os recursos do programa “Crack, É Possível Vencer” serão repassado ao governo mineiro por meio do programa Aliança pela Vida (que já foi tema de discussão aqui no blog). Lançado em agosto de 2011, o Aliança pela Vida serviu como referência para a criação do programa federal.
No entanto, vemos algumas problemáticas na execução do programa “Crack, É Possível Vencer”. Como se não bastasse o repasse de verbas do governo mineiro em apoio às comunidades terapêuticas, através do Aliança pela Vida, que acaba por privilegiar a internação como modalidade terapêutica, agora temos o financiamento público das comunidades terapêuticas a nível nacional.
Questionamos novamente as comunidades terapêuticas como forma de tratamento. Que “terapêutica” é essa que rechaça a subjetividade do usuário, impossibilitando sua reabilitacao psicossocial, uma vez que beneficia a internação? Como mostra o Relatório da 4ª Inspeção Nacional de Direitos Humanos do Conselho Federal de Psicologia (CFP), nas 68 comunidades terapêuticas analisadas, há indícios de violações de direitos humanos dos usuários.
O CFP também apresenta críticas ao programa “Crack, É Possível Vencer”. Com a inclusão das comunidades terapêuticas como dispositivos do Sistema Único de Saúde, levanta-se a preocupação de que isso possa se constituir o retorno da lógica manicomial. Esta lógica mostra-se contrária à lógica do SUS, que defende a redução de danos e a integração social, tendo em vista a co-responsabilização do usuário no seu tratamento.
Apesar do programa trazer avanços ao fortalecer os serviços substitutivos em saúde mental, com a ampliação dos Centros de Atenção Psicossociais Álcool e outras Drogas (CAPS-AD), relembramos que uma das diretrizes da IV Conferência Nacional de Saúde Mental diz respeito em “manter a decisão do Ministério da Saúde de não remunerar comunidades terapêuticas”.
Outra ação do programa que nos preocupa é o possível uso dos Consultórios na Rua como porta de entrada para as internações compulsórias, caracterizando-se em uma medida higienista. Serão criados mais de 300 unidades nas cracolândias.
Diante de um plano ousado como esse, com orçamento na casa dos bilhões e que prevê um esforço conjunto da esfera federal, estadual e municipal, tecemos nossas críticas e questionamentos, tendo sempre em vista a preocupação com as formulações de políticas públicas em saúde mental e seus desdobramentos.
Sem dúvida, o crack transformou-se numa preocupação nacional. Essa verdadeira política de "guerra" contra o crack invadiu nossas casas e se tornou o assunto da vez. Muito útil os esclarecimentos sobre o programa do governo, principalmente as observações que fizeram sobre ele. Parabéns.
ResponderExcluirLonge de se sonhar com uma cura a reabilitação só acontece a partir de uma tomada de decisão subjetiva o suficiente para justificar a exclusão dos modelos manicomiais enlouquecedores como forma de tratamento.
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